No dia 30 de janeiro, que marca o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, o Fórum de Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas lança o documento elaborado a partir das discussões do último encontro, realizado em dezembro de 2020.

Pautada pelos debates possibilitados pela programação feita de forma virtual, a Carta Aberta do 5ª Encontro Brasileiro de Movimentos Sociais de Luta contra Doenças Infecciosas e Negligenciadas aponta os desafios vivenciados para as pessoas acometidas por DTNs na pandemia e elenca reivindicações endereçadas às autoridades governamentais de todas as esferas.

Dentre as pautas, o documento defende as instituições democráticas, a adoção de políticas públicas que olhem para a saúde de forma mais ampla e o enfrentamento à pandemia de covid-19 com base em critérios científicos.

 

Carta Aberta do 5º Encontro Brasileiro de Movimentos Sociais de Luta contra Doenças Infecciosas e Negligenciadas – Fórum Social Brasileiro de Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas

O Fórum Social Brasileiro de Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas foi constituído em 2016 no Brasil, como ampla articulação democrática de movimentos e organizações sociais, associações de pessoas acometidas por diferentes doenças, juntamente com universidades, fundações e institutos de pesquisa, estudantes, profissionais de saúde e cidadãos e cidadãs apoiadores(as). Ao longo dos seus cinco anos de existência, tem atuado como espaço de representação, apoio, aprendizado, empoderamento, articulação e visibilidade com foco na luta pela defesa dos direitos humanos e sociais das pessoas e comunidades afetadas e/ou vivendo com doenças infecciosas e negligenciadas. Representações para enfrentamento da doença de Chagas, da leishmaniose, da hanseníase, da esquistossomose, das hepatites virais e da filariose linfática têm unido esforços e experiências coletivas, desde então, particularmente na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS).

Com abrangência global, essas condições destacam-se no Brasil pela grande carga de doença e morte e por estarem fortemente atreladas à pobreza estrutural, ao estigma associado, ao limitado acesso a diagnóstico e tratamento nos serviços de saúde, ao baixo investimento em pesquisas e avanços tecnológicos para novos métodos diagnósticos, fármacos e acompanhamento das pessoas acometidas em todas as fases do adoecimento. A negligência às pessoas e territórios abre espaço para a sua persistência ano após ano.

Esses desafios intensificaram-se ainda mais diante do crítico contexto de emergência da covid-19 atrelada a crises globais, não apenas sanitária, mas também político-econômica, com aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Igualmente, as crises política, econômica, sanitária e social alcançaram patamares sem precedentes. O governo brasileiro de modo aberto fragilizou medidas de controle como o distanciamento social e o uso de máscaras, além de gerar descoordenação entre as esferas de governo para desenvolvimento de ações. A despeito dessas questões, optou-se pela realização em 2020 do 5º Encontro do Fórum Social Brasileiro para o Enfrentamento de Doenças Infecciosas e Negligenciadas para demarcar posições frente à política desastrosa do governo brasileiro para o controle da pandemia. Desta forma, nos dias 10, 11 e 12 de dezembro, o encontro foi realizado sob o formato virtual e com forte construção coletiva, tendo como tema central: “Os efeitos da pandemia no acesso à atenção à saúde para Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN) em cenários de desigualdades socioeconômicas: Papel das lideranças e da mobilização da sociedade”. Todo esse movimento foi recompensado: mais de 300 inscrições prévias e mais de 1.200 visualizações, ao vivo, pelo canal do YouTube ao longo dos três dias do evento.

As apresentações e os debates fomentaram discussões acerca dos diversos obstáculos a serem superados. Desde a ineficiência das políticas de enfrentamento à covid-19 voltada para as populações mais vulneráveis, passando pela limitação de acesso aos serviços de saúde a pessoas acometidas por doenças infecciosas e negligenciadas para diagnóstico, tratamento e seguimento, até a crítica desigualdade expressa pelo acesso à internet e às tecnologias digitais, que ainda persiste em grandes parcelas da sociedade brasileira.

No momento em que concluímos esta carta, alcançamos aproximadamente 8,8 milhões de casos e 215 mil vidas perdidas para a covid-19 no Brasil. Este contexto de grande sofrimento, consternação, desinformação e revolta de nossa sociedade reforça a importância de seguirmos na construção do Sistema Único de Saúde, fortalecendo-o. Isso passa necessariamente pela superação do teto de gastos e pela ampliação dos investimentos financeiros e de gestão. A falta de coordenação nacional das ações em saúde tem sido sentida também em outras situações, como: em falhas no abastecimento de medicamentos para tratamento da hanseníase e na disponibilização de testes para genotipagem para a infecção por HIV e hepatite C. Em outros setores com impacto direto na saúde, inserem-se as desastrosas políticas ambientais, o avanço liberal na economia com geração de taxas elevadas de desemprego e restrição de direitos sociais, as limitadas políticas internacionais que isolam o país de iniciativas globais.

Frente à urgente necessidade de mitigar o impacto da pandemia no país, particularmente na saúde das pessoas acometidas por doenças infecciosas e negligenciadas e garantir o direito universal à saúde de todas as brasileiras e brasileiros, o Fórum Social Brasileiro para o Enfrentamento de Doenças Infecciosas e Negligenciadas elaborou a presente carta com base nos debates realizados neste 5º encontro.

No dia 30 de janeiro de 2021, Dia Mundial voltado para as Doenças Tropicais Negligenciadas, conclamamos as autoridades governamentais das diferentes esferas e toda a sociedade brasileira a:

i. Defender o Estado Democrático de Direito e o irrestrito respeito às instituições democráticas;

ii. Defender e reivindicar o estabelecimento de uma sociedade mais solidária e justa, de modo a romper com as condições de iniquidade em saúde, educação, moradia, emprego e qualidade de vida, como um todo, em que a população brasileira se insere;

iii. Defender e reivindicar a adoção de políticas públicas que contemplem a saúde de forma integral e intersetorial e incluam as dimensões necessárias de desenvolvimento inclusivo, social e humano para o enfrentamento efetivo das doenças infecciosas e negligenciadas;

iv. Defender em caráter de urgência o retorno do auxílio emergencial de R$ 600,00 para as pessoas em condição de vulnerabilidade social no país, com vistas a reduzir o impacto da crise sobre as pessoas e a fortalecer as medidas de distanciamento social para conter a disseminação do novo coronavírus;

v. Defender a consolidação do SUS universal, integral, igualitário e gratuito a todas e todos no Brasil, o que passa necessariamente pela valorização dos trabalhadores em saúde e a revogação imediata da Emenda Constitucional no 95 de 2016 com garantia de financiamento adequado para atendimento de todas as necessidades em saúde da população brasileira, incluindo aquelas relativas ao controle da covid-19;

vi. Defender a garantia de acesso à atenção integral à saúde no SUS a todas e todos no país, com garantia de inclusão de pessoas afetadas e/ou vivendo com doenças infecciosas e negligenciadas;

vii. Defender e reivindicar a implementação de políticas de enfrentamento à pandemia da covid-19 baseadas em evidências científicas, particularmente de consistente plano nacional de vacinação para acesso universal, oportuno e gratuito ao longo de 2021, aliado ao fortalecimento da vigilância epidemiológica, considerando-se as especificidades nacionais relativas à vulnerabilidade para a doença;

viii. Defender e reivindicar a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, visando ao desenvolvimento de pesquisas estratégicas voltadas às necessidades inerentes ao controle de doenças infecciosas e negligenciadas, incluindo diagnóstico acurado, tratamento seguro e efetivo e a redução dos seus impactos psicossociais;

ix. Defender a Universidade Pública como política fomentadora do ensino, da pesquisa, da liberdade de expressão e do desenvolvimento humano e social, bem como seu financiamento adequado;

x. Defender e reivindicar o direito ao acesso universal e gratuito a medicamentos essenciais, voltados às doenças infecciosas e negligenciadas;

xi. Cobrar das autoridades responsáveis a oferta oportuna e constante de medicamentos para tratamento da hanseníase, em falta atualmente;

xii. Defender o fortalecimento dos laboratórios públicos brasileiros, fundamentais para a produção de vacinas, medicamentos e outros insumos para atendimento às necessidades do SUS;

xiii. Denunciar e enfrentar a ganância da indústria farmacêutica que lucra sobre medicamentos e vacinas essenciais, como as desenvolvidas contra a covid-19, negligenciando as necessidades das populações em situação de vulnerabilidade, dentro do modelo de sistema de inovação em saúde vigente;

xiv. Defender a suspensão de monopólios farmacêuticos sobre tecnologias essenciais para o enfrentamento da covid-19 por meio do Projeto de Lei no 1462 de 2020 e da proposta de suspensão temporária de direitos de propriedade intelectual (waiver) feita pela Índia e pela África do Sul no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC);

xv. Defender e reivindicar a garantia de participação social na condução da política em saúde, bem como o fortalecimento dos conselhos de saúde e de assistência social, o que inclui a participação efetiva de pessoas, movimentos e organizações na luta e no enfrentamento das doenças negligenciadas e infecciosas nas diferentes instâncias, em especial aquelas de controle social (conferências e conselhos de saúde e assistência social etc.) para a tomada de decisões políticas acerca dos direitos sociais e à saúde;

xvi. Estimular/fomentar iniciativas/estratégias para a superação do estigma associado às doenças negligenciadas e infecciosas e para o empoderamento de pessoas, movimentos e associações na perspectiva do Direito Constitucional à Saúde;

xvii. Estimular, articular e promover ações governamentais e não governamentais que ampliem a visibilidade da situação epidemiológica de doenças infecciosas e negligenciadas tanto em relação à sua distribuição quanto aos seus determinantes sociais;

xviii. Defender e reivindicar a transparência e a seriedade na comunicação em saúde realizada por parte das autoridades sanitárias brasileiras, incluindo ações de comunicação em saúde sobre atenção e cuidado para pessoas com doenças negligenciadas e infecciosas;

xix. Defender e reivindicar a inclusão digital de toda a sociedade brasileira, diante das tensões e evidências geradas pela pandemia da covid-19;

xx. Articular e fomentar a capacitação de comunidades, movimentos, lideranças e profissionais locais para desenvolvimento de ações de saúde e de educação que incluam a educação popular em saúde;

xxi. Articular e estimular a realização de eventos técnicos e científicos e estudos abordando doenças infecciosas e negligenciadas, incentivando a participação de pessoas, associações e organizações diretamente atingidas e/ou envolvidas com a temática central do Fórum;

xxii. Articular iniciativas alusivas ao Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, para fortalecer as ações e estratégias de enfrentamento às doenças negligenciadas;

xxiii. Articular, promover e estimular a criação de associações de pessoas afetadas pela covid-19, de modo a oferecer apoio às populações atingidas em diferentes contextos socioeconômicos e demográficos;

xxiv. Incluir, entre os grupos prioritários para a vacinação contra a covid-19, pessoas afetadas por doenças negligenciadas que apresentem aumento da vulnerabilidade para desenvolver síndrome respiratória grave em função da infecção pelo vírus Sars-CoV-2, tais como: pessoas afetadas por doença de Chagas, pessoas em tratamento de reações hansênicas, pessoas com leishmaniose visceral com comorbidades, pessoas portadoras de hepatites virais e outras DTN associadas a condições crônicas.

 

Graças ao SUS, um verdadeiro patrimônio do povo brasileiro, milhares de vidas foram salvas na pandemia por covid-19. A presente carta da 5ª edição do Fórum Social Brasileiro de Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas reafirma a necessidade de uma nova agenda política para o país que respeite a democracia e, sobretudo, respeite a vida.

Texto via: NHR Brasil

Carta na versão em língua inglesa – Open Letter from the 5th Brazilian Meeting of Social Movements to Fight Infectious and Neglected Diseases