Ao som da música suave e delicada, a câmera passeia pelo corpo do bebê, revelando, aos poucos, os gestos, as mãozinhas, os pezinhos. Até focar no sorriso contagiante e nos olhinhos característicos da síndrome de Down. Ao final do comercial de TV que viralizou no Brasil no dia das mães, o slogan diz: “Para nós e para todas as mães, todo bebê é um bebê Johnson’s”.
Em uma das séries mais populares da TV americana dos últimos tempos, Walter White Jr. é um adolescente cheio de vida. Com personalidade forte, questiona constantemente as decisões do pai, o personagem principal. O adolescente (assim como o ator que o interpreta, RJ Mitte) nasceu com paralisia cerebral. Tem a fala comprometida e usa muletas. Breaking Bad ficou no ar entre 2008 e 2013 e teve cinco temporadas.
Na novela da Globo, Luciana é uma modelo jovem, bonita e bem-sucedida. Sofre um acidente e fica tetraplégica. O público quer saber: ela voltará a andar? Luciana se apaixona, se casa, tem filhos. Ao final da novela Viver a Vida, exibida pela Globo entre 2009 e 2010, o público agora quer saber: ela vai ser feliz?
Na campanha publicitária interativa, consumidores são convidados a enviar ao fabricante de sabão vídeos e fotos de momentos reais de suas vidas. O anúncio resultante, no ar atualmente em televisões brasileiras, é uma colagem mostrando “a vida como ela é”. Famílias de todas as raças e formas, em situações variadas, se revezam na tela. No meio de todos, um menino com síndrome de Down, a roupa toda suja. “Se sujar faz bem”, é o slogan do Omo. Criança com deficiência também é consumidora. E também se suja.
A população da Terra ultrapassou os 7,5 bilhões em 2016. Destes, mais de 1 bilhão, ou seja, 15%, têm algum tipo de deficiência. No Brasil, o índice sobe para 24%.
Estima-se que menos de 1% dessas pessoas estejam presentes na mídia.
Os exemplos acima mostram, no entanto, que as coisas estão mudando. E por trás dessa transformação está o ativismo de pessoas que, com diálogo e muita paciência, trabalham para mostrar a roteiristas, publicitários e profissionais da mídia que existe um outro jeito de pensar – e de representar – a deficiência.
A BBC Brasil conversou com três dessas militantes: Patrícia Almeida, jornalista e fundadora da Gadim, Aliança Global para a Inclusão de Pessoas com Deficiência na Mídia e Entretenimento (e ex-jornalista do serviço brasileiro da BBC); Flávia Cintra, ex-diretora da ONG Centro de Vida Independente, hoje repórter do programa Fantástico, da TV Globo, e Patrícia Heiderich, publicitária e cofundadora do Instituto MetaSocial, ONG que trabalha por uma mídia mais inclusiva. Elas falam das vitórias do movimento e explicam seu impacto na sociedade.
Bebê Johnson’s
“O simbolismo deste personagem é enorme pois o ‘Bebê Johnson’s’ habita o imaginário da população como sinônimo de criança linda, saudável e feliz, como todas as crianças deveriam ser”, comenta Patrícia Almeida em artigo publicado no site sobre inclusão e cidadania Inclusive.org.br.
O anúncio, do publicitário Nizan Guanaes, foi recebido com particular orgulho por duas pioneiras do movimento pela inclusão de pessoas com deficiência na mídia. Para entendermos por quê, temos de voltar no tempo.
Na década de 1990, a publicitária Patrícia Heiderich e a arquiteta Helena Werneck estavam cansadas de ver outras mães saírem do parquinho quando chegavam com as crianças para brincar. Decidiram tomar uma atitude.
“Tínhamos filhas com síndrome de Down e éramos felizes. Lembra do comercial da Doriana, da família feliz?”, pergunta Heiderich. “Eu estudava publicidade e achava que poderíamos mudar o estigma que havia sobre Down por meio da televisão.”
A dupla iniciou então uma verdadeira campanha para chegar a um publicitário cuja carreira despontava na propaganda brasileira: Nizan Guanaes. “A ideia era convencer Nizan a colocar alguém com síndrome de Down em uma propaganda no estilo família feliz.”
Heiderich e Werneck se revezavam nos telefonemas. Todos os dias, lembra Heiderich, elas ligavam para a agência onde Guanaes trabalhava, a DM9, e pediam para ser recebidas por ele. O assunto? “É só com ele”, vinha a resposta. Insistiram tanto que ganharam cinco minutos.
“Ele não se sentou. Tentamos contar da maneira mais rápida possivel que pessoas com Down podiam fazer um monte de coisas. Que a visão de incapacidade não era real. As pessoas não sabem. Não era maldade, mas a sociedade desconhecia. Ele virou, cruzou os braços e falou: ‘Nunca pensei nisso. E gostei’.”
Pessoas próximas ao publicitário dizem que ele não se lembra do encontro, mas em 1996 foi ao ar um anúncio institucional sobre síndrome de Down criado pelo publicitário Sérgio Valente, colega de Guanaes na DM9.
“Este é Felipe Badin. Está tocando O Trenzinho Caipira, de Villa-Lobos. E você, que música você toca?”, dizia a narração. O filme mostrava apenas as mãos de Felipe tocando piano. No final do anúncio, ele virava o rosto para a câmera. O slogan dizia: “Quem tem síndrome de Down pode mais do que você imagina”.
‘Coitadismo’
Dois anos depois, a mesma agência produziu um novo anúncio sobre Down. Desta vez, explica Heiderich, o objetivo era desassociar a imagem da síndrome de Down de sentimentos de pena usados por instituições para pedir dinheiro à população.
O anúncio mostrava duas crianças brincando em um carrossel. Não havia narração, apenas música e legendas: “Carlinhos vai para a escola todos os dias, o amigo dele, não. Carlinhos faz aula de piano, o amigo dele, não”. Num determinado momento, a legenda dizia, “Este é o Carlinhos.” A câmera focava o rosto de um menino com Down. E depois: “E esse é o amigo dele. Ele é um menino de rua.” A câmera mostrava a roupa puída e os pés calçando chinelo. No final, lia-se o slogan: “Milhares de crianças no Brasil precisam da sua ajuda. Portadores da sindrome de Down só precisam do seu respeito. A pior sindrome é a do preconceito.” (Aliás, diz Heiderich, a palavra “portador” não é mais usada no contexto da deficiência.)
A ideia que embasa esse anúncio é central ao pensamento inclusivo, explicam as ativistas: inclusão não pode ser feita com base na pena. Aliás, essa ideia se aplica também ao menino de chinelo, o amigo de Carlinhos.
“Como é que você consegue ver competência em uma pessoa quando sente pena dela? Não podemos apelar para a pena porque estaremos dando um tiro no pé”, diz Heiderich.
“Você doa para a Mata Atlântica ou para as baleias porque quer que continuem existindo, quer preservá-las, não por pena. O bebê com Down está sendo mostrado como uma figura de amor, como todos os bebes são. E não é porque tem Down, mas porque é um bebê fofo.”
Empatia
Visto dessa maneira, o conceito de inclusão parece contrariar uma noção social básica. Quase como se fosse errado sentir compaixão por alguém.
“A palavra hoje é empatia. Você se identificar, se colocar na pele do outro, é fundamental”, diz a jornalista Patrícia Almeida.
Do lado oposto, está o que os ativistas chamam de “coitadismo”: “A ideia de que a pessoa com deficiência sempre precisa de ajuda”, diz ela.
“Os que usam disso para arrecadar dinheiro dizem que os fins justificam os meios, mas o resultado para a pessoa com deficiência é terrivel. Aliás, quem tem de equalizar, igualar as oportunidades é o Estado. Isso é o que dizem todas as leis.”
Para explicar melhor, Almeida cita o modelo de inclusão presente em séries de TV americanas como Breaking Bad e Switched at Birth. Elas incluem personagens com deficiências interpretados por atores com deficiências. Mas a última coisa que o espectador sente por eles é pena.
Em Breaking Bad, Walter Jr. tem paralisia cerebral, mas o foco não é esse. Ele é um adolescente como qualquer outro.
“É incrível como a mensagem tem a ver com a atitude da pessoa (que têm a deficiência) e das pessoas em volta. Se a pessoa com deficiência aparece na tela em situação de normalidade, ninguém fica protegendo ou dizendo, ‘coitado do meu filho’. Você esquece que a pessoa tem deficiência depois de cinco minutos.”
“Essa mídia tem esse poder. Se você não tem contato no seu dia a dia com pessoas com deficiência e vê essa pessoa na tela, incluída com naturalidade, você tende a incorporar essa atitude.”
Na série Switched at Birth, as protagonistas são duas adolescentes que foram trocadas na maternidade. Uma delas é surda. Em cinco temporadas no ar, a série inclui cenas gravadas em total silêncio. Toda a comunicação se faz por língua de sinais.
“Me chama atenção por ter pessoa surda como personagem principal, (por apresentar ao público) o universo das pessoas surdas. Mas ela ser surda não é o foco. O foco é ela ter sido trocada (na maternidade)”, diz Almeida.
“A deficiência é uma das características da pessoa, não é o ponto principal. A série é para adolescentes. (A trama) toca em todas as questões, o namorado, o primeiro emprego. E todo mundo junto, incluído. Surdos, não surdos… muito legal.”
Deficiência e castigo
Além de mostrar a deficiência como algo natural, tramas como essas rompem com um velho vício dos contadores de história ao longo dos séculos: a associação da deficiência com a ideia de punição.
E, no caso do Brasil, nada como uma telenovela para ilustrar isso. “Na novela O Direito de Nascer (1964), um personagem malvado ficou deficiente, como um castigo”, diz Almeida.
“Por outro lado, havia nas histórias personagens que perdiam a visão, paravam de andar, mas sempre surgia uma cura milagrosa e um final feliz. Você não podia ser deficiente e feliz ao mesmo tempo.”
Mas também nas telenovelas as coisas vêm mudando. Com a ajuda, mais uma vez, de um empurrãozinho.
“A primeira novela com personagem positivo com deficiencia foi ao ar em 1986, Roda de Fogo, da Globo”, conta Almeida. “Uma cadeirante, Rosângela Berman, soube que iam fazer uma novela e que ia ter um personagem cadeirante. Ela foi ao estúdio e viu que iam botar o garoto em uma cadeira de rodas de hospital e que (o personagem) ia ser deprimido. Então bateu um papo com os roteiristas.”
Resultado? O personagem ganhou cadeira ultramoderna e teve até vida sexual na novela, algo sem precedentes na época.
“Alguém foi lá e falou, vem cá, por que vocês não fazem assim?”, conta. Desde então, autores de novela regularmente procuram consultoria de militantes pela inclusão.
Final feliz
A ativista Flávia Cintra, hoje jornalista da equipe do programa Fantástico, da Globo, deu consultoria ao escritor Manoel Carlos na novela Viver a Vida (2009), estrelada por Alinne Moraes.
Tetraplégica, Cintra era bastante ativa no movimento pelos direitos de pessoas com deficiência. Quando ficou grávida, sua gestação gerou grande interesse na mídia. Seu caso chegou aos ouvidos de Manoel Carlos.
“Por eu ser tetraplégica, por serem gêmeos, por ter sido uma gravidez natural”, ela explica o interesse.
Tempos depois, Cintra foi convidada para ser consultora da equipe de roteiristas e também para orientar a atriz.
“Alinne Moraes era uma celebridade do primeiro escalão de elenco da Globo. Era a segunda protagonista, mas o envolvimento do público foi tamanho que ela acabou se tornando personagem central da novela”, conta Cintra.
Viver a Vida teve, sim, um final feliz. E a personagem de Alinne Moraes, Luciana, não voltou a andar.
A inclusão na mídia tem o poder de mudar a cabeça do público, dizem os ativistas. Ela também fortalece a autoestima das pessoas com deficiência, que conseguem se ver e se identificar. E ainda transforma as vidas dos que já brigam por ela.
“Para mim, um divisor de águas foi (a novela) Páginas da Vida (2006), do Manoel Carlos, onde havia a personagem Clarinha, com sindrome de Down”, diz Patrícia Almeida.
Clarinha fica órfã de mãe e é adotada por uma médica interpretada por Regina Duarte.
“É muito legal porque todo mundo adora a menina. No final, o pai de Clarinha luta pela guarda da filha com a médica. Ou seja uma criança com deficiência que todo mundo queria, um presente.”
Almeida tem uma filha com Down. Ela ainda se emociona quando lembra de um capítulo em particular:
“Na época, minha filha tinha dois anos. Eu sabia da consultoria que estava sendo feita por trás da novela, conhecia as pessoas. Mas mesmo assim, quando a Regina Duarte falou, na novela, que a Clarinha era uma criança como qualquer outra, eu finalmente acreditei. Racionalmente eu já tinha entendido essas coisas, mas o que faltava era o emocional. Depois disso, não teve volta.” (Matéria de Mônica Vasconcelos, par a BBC Brasil em Londres – 26/08/2017 – fotos: divulgação Johnson & Johnson e Divulgação/Thiago Prado)