Luiza Porto de Faria(*)
É difícil dizer alguma coisa sobre as origens do termo lepra. Não há consenso entre nós, historiadores, sobre o assunto. O que concordamos é que se trata de uma das doenças mais antigas, pelo menos em termos de registros históricos. No Brasil, não há registros da doença anteriores ao processo de colonização europeia, iniciado no século XVI. A partir daí muito se falou sobre a doença, a ponto de ela mudar de nome por aqui, num processo que aconteceu no século XX e que gostaria de fazer alguns comentários aqui hoje.
Em 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, foi expedida uma regulamentação a fim de combater a endemia de lepra que se verificava no Brasil. Até então, pouca atenção era dirigida à doença, sendo que a criação da Inspetoria de Lepra e Doenças Venéreas (Decreto n.º 14354 de 15-9-20) buscava alterar esse quadro. A partir daquele momento, a Lepra passava a ser uma responsabilidade do Estado, seguindo as instruções acordadas na I Conferência Internacional de Lepra, ocorrida ainda em 1897 na Alemanha. Entretanto, quase um século depois, podemos ainda nos perguntar qual é a importância dada à doença no país. Com todas as rupturas verificáveis, quanto da lepra ainda permanece na hanseníase?
Isso porque, como afirma Luciano Curi (2010), lepra e hanseníase não se equiparam, devendo ser enquadradas em seus respectivos contextos socioculturais, de forma a impedir que as conotações históricas de uma embaracem a compreensão da outra. Desde sua identificação por Gerard Amauer Hansen em 1874, o termo bíblico “lepra” foi sucessivamente encoberto por camadas de preconceitos que afetaram (e ainda afetam) diretamente o tratamento dirigido à doença. A partir de então, construiu-se um crescente sistema isolacionista cujos efeitos podem ser vistos ainda hoje.
Por sua vez, na década de 1970, o advento da sulfona no tratamento médico permitiu a “criação” do termo hanseníase – apenas aqui no Brasil, diga-se de passagem – com o objetivo de livrar a doença e os doentes do estigma associado ao termo lepra. Ao mesmo tempo, buscava reformular o prognóstico, questionar a segregação como política de Estado e criar mecanismos para a reinserção dos “leprosos” à sociedade. Portanto, diante daquilo que podem ser consideradas duas enfermidades diferentes, como justificar o silêncio subsistente sobre a realidade da hanseníase no país?
Nos últimos anos, o Brasil tem registrado um número crescente de casos de hanseníase, figurando em segundo lugar no ranking mundial – atrás apenas da Índia. Significa dizer que não só fomos incapazes de eliminar a doença, como também registramos indicadores preocupantes que ainda não recebem a devida atenção. A propagação da doença ainda é uma realidade no país e mesmo assim fechamos os olhos para a verdade. Isso porque, tal como acontecia em relação à lepra, não falamos sobre a hanseníase. A doença pouco interessa à maioria dos epidemiologistas, aos órgãos de saúde ou à mídia em geral – à exceção daqueles acometidos pelo mal, poucos se incomodam com a calamidade, tornando o diagnóstico negligenciado.
Portanto, a mudança do nome é contraditória, uma vez que os dados demonstram como a falta de comunicação e informação escondem a permanência do estigma. Não só negligenciamos o diagnóstico, como também o próprio silêncio acerca da hanseníase, incapacitando psicologicamente o paciente que, receoso do preconceito, muitas vezes tenta esconder seus sintomas de amigos e familiares.
Tal realidade, acompanhada do longo tempo de incubação possível e da falta de preparo dos órgãos de saúde para examinar um grande número de pessoas, cria uma cadeia de propagação difícil de ser combatida. Ou seja, é preciso combater a doença não apenas sob seu aspecto farmacológico, mas também moral – enquanto a hanseníase continuar invisível seremos incapazes de extingui-la.
Que não nos falte coragem para seguir combatendo a lepra, a hanseníase, o preconceito, o estigma e tudo mais o que fizer parte desse processo, historicamente construído!
Um abraço pra todo mundo e até a próxima!
(*) Luiza Porto de Faria – ela é historiadora e escreveu o artigo para FUNDHANS/DAHW, uma fundação que trabalha por um mundo sem hanseníase, historicamente há 60 anos.