Único país que não conseguiu eliminar a propagação da hanseníase em cumprimento às metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para 2015, o Brasil corre o risco de perder o controle sobre a doença. À revelia das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das sociedades científicas, o Ministério da Saúde estuda uniformizar o tratamento, passando a tratar de maneira igual, e pelo mesmo tempo, diferentes pacientes, com graus distintos de comprometimento. É a chamada multidroga terapia dose única (MDT-U).

Atualmente, os pacientes paucibacilares (PB), com baixa taxa de bacilos, recebem os antibióticos rifampicina e dapsona durante seis meses de tratamento. E os multibacilares (MB), com grande quantidade de bacilos, recebem ainda um terceiro antibiótico, a clofazimina. Para esse caso, o tratamento pode durar até 24 meses. Esses pacientes, mais comprometidos, estariam então recebendo o equivalente a um quarto do tratamento. Já os PB, que correspondem a 30% de todos os doentes, seriam tratados com um medicamento do qual não necessitam.

A proposta desperta a preocupação de especialistas da Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH), da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), da Associação Médica Brasileira (AMB), do Centro de Referência Nacional em Dermatologia Sanitária com Ênfase em Hanseníase do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP e do Hospital das Clínicas, da Universidade Federal de Uberlândia, além do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Representantes dessas entidades, com assento no Comitê Técnico Assessor da hanseníase no Ministério da Saúde, divulgaram ontem (10) manifesto contra a implementação do esquema único de tratamento.

“A falta de consenso no comitê e no Ministério como um todo é que a proposta em estudo não tem respaldo científico e nem aval da OMS, que recentemente se pronunciou contra o MDT-U (seis doses MB) para uso nas diferentes regiões do planeta. Faltam pesquisas com acompanhamento de grandes grupos e por tempo prolongado”, disse o médico Cláudio Salgado, presidente da SBH.

Os especialistas temem que o tempo reduzido de tratamento não surta efeito porque o atual, mais prolongado, já se mostra insuficiente. Um levantamento do Centro de Referência Nacional em Dermatologia Sanitária e Hanseníase do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU/MG), a partir de dados de 2015 a 2017, aponta índices de 15% de recidivas, 8% de insuficiência de tratamento e 8,8% de falência de tratamento em pacientes multibacilares mesmo após 12 ou 24 meses de tratamento. Fora os casos de pacientes que já receberam as 12 doses, ou seja, cumpriram um ano de tratamento, mas apresentaram índice baciloscópico maior que 3 (a escala vai de 0 a 6), considerado alto pelos especialistas.

A cada ano, o Brasil registra 30 mil novos casos de hanseníase. O dado oficial é considerado subnotificado pela SBH, que acredita ser cinco vezes maior. Doença grave e incapacitante, que afeta os nervos, a hanseníase tem afetado um grande número de adolescentes, menores de 15 anos. Como pode levar até dez anos para se manifestar, significa que o contágio provavelmente ocorreu na infância. Os casos são mais comuns nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, além de bolsões de pobreza em grandes cidades.

De acordo com Salgado, embora os dados indiquem queda na incidência da hanseníase, os médicos observam que muitos pacientes apresentam recidiva, ou seja, o retorno da doença. “A situação é preocupante porque os médicos não estão sendo formados para diagnosticar e tratar. A hanseníase deixou de ser uma disciplina e passou a ser tema estudado superficialmente não só na graduação em Medicina como em outras áreas da saúde, como Enfermagem.”

Também conhecida como lepra, a hanseníase foi a doença mais temida na Idade Média. Apesar do avanço da Medicina, ainda faz muitas vítimas porque, como seu tratamento não é lucrativo, não atrai o interesse dos laboratórios na pesquisa – daí a dificuldade de se pensar em controle. Faltam centros de referência para o atendimento aos doentes, novos medicamentos e especialistas. Os remédios utilizados em todo o mundo têm mais de 40 anos e são distribuídos gratuitamente pelas fundações estrangeiras Novartis e Nippon. Segundo a SBH, o governo brasileiro não tem custo com a compra.

O Ministério da Saúde foi procurado pela reportagem para explicar as razões da mudança no protocolo em estudo. Mas não se manifestou até o fechamento.

Volta da doença

Doença infecciosa, contagiosa, associada a desigualdades sociais porque afeta principalmente as regiões mais carentes do mundo, é transmitida por meio de bacilos presentes nas secreções nasais e gotículas da saliva ou espalhadas pela tosse e espirros de pessoas que carregam os bacilos e não estão sendo tratadas. Já os pacientes em tratamento não transmitem — aqueles que estão sendo tratados deixam de transmitir.

Os principais sintomas são dormências, dor nos nervos dos braços, mãos, pernas e pés; lesões de pele (caroços e placas pelo corpo) com alteração da sensibilidade ao calor, ao frio e ao toque e áreas da pele com alteração da sensibilidade mesmo sem lesão aparente; e diminuição da força muscular. Essas manchas são esbranquiçadas, avermelhadas ou amarronzadas.

O diagnóstico precoce é fundamental porque evita a evolução da enfermidade, que causa deformidades físicas e incapacitação. Em 2014, dos 5,6 milhões de estudantes de 5 a 14 anos examinados, 354 foram diagnosticados com hanseníase, representando 0,15%. Quando uma criança apresenta a doença, existe um adulto do seu convívio ainda sem diagnóstico e tratamento. (Matéria de Cida de Oliveira, para a RBA, publicado em 11/05/2018, no www.sul21.com.br – A ilustração desse material data do século 14 mostra doentes em leprosário. Doença mais temida na idade média pode perder o controle no país | Foto: Wikimedia Commons)