*Esse texto escrito por Waldick Junior foi publicado originalmente no Portal, a Crítica.
Doutor em antropologia social, João Paulo avalia as derrotas sofridas pelo movimento indígena em uma série de votações realizadas, nessa semana, na Câmara dos Deputados
Graduado em Filosofia e doutor em Antropologia Social (Ufam), João Paulo Tukano avalia que a série de derrotas do movimento indígena na Câmara dos Deputados é resultado de uma “política de usurpação” com viés racista contra as populações tradicionais.
Em entrevista para A CRÍTICA, ele comentou sobre a aprovação do Projeto de Lei 490/2007 (marco temporal) e a Medida Provisória 1.154, que estabelece a estrutura do novo governo e foi alterada pela Câmara para retirar competências do Ministério dos Povos Indígenas. Confira abaixo.
Nessa semana tivemos perdas consideráveis para o movimento indígena, especialmente a aprovação do marco temporal na Câmara dos Deputados e a retirada de competências do Ministério dos Povos Indígenas na medida provisória de estruturação do governo. O que essas derrotas significam?
Essas práticas de colocar os povos indígenas como problema ao desenvolvimento não são novas. Isso faz parte de uma estrutura ideológica de uma dominação, de usurpação e de uma sociedade racista. O Brasil, como Estado, sempre tratou os povos indígenas dessa forma, usurpando nossos direitos. Não há como dizer que temos um bom governo num período e outro ruim em outro momento. É o próprio sistema que funciona assim, praticando políticas de usurpação de direitos dos povos indígenas.
Essas medidas foram aprovadas por um congresso mais à direita, conservador. É um ambiente com quase nenhuma representatividade indígena. Dos parlamentares do Amazonas, estado mais indígena do Brasil, nenhum pertence a um povo originário, por exemplo. Qual a causa dessa subrepresentatividade?
Nós nos orgulhamos de viver num país democrático, mas essa democracia é uma fachada. Quem detém o poder tem possibilidade de dominar e ocupar esses espaços, é a sociedade que detém o poder econômico. Nesse sentido, a bancada de parlamentares, seja do Amazonas ou outro lugar, quem está no poder são os que detém o poder financeiro. Não há como a gente dizer que os povos indígenas não têm participação, não tem representatividade, porque não temos poder financeiro, assim como os pobres. Nosso país, lamentavelmente, é fundado a partir dessa lógica de poder econômico e de ideologias ligadas à direita. A direita nada mais é do que essa classe dominante que sempre esteve presente no poder.
O marco temporal agora vai para o Senado, onde o presidente Rodrigo Pacheco já disse que tramitará com mais calma e garantindo a escuta dos indígenas. Depois, o presidente Lula pode aprovar ou vetar. Por que esse critério para demarcação das terras é prejudicial?
A invenção do marco temporal é uma narrativa perversa, que manifesta o racismo do Brasil como ideologia implícita de uma camada da sociedade. E essa camada detém todas as instituições, a educação, as instituições religiosas, que são seus mecanismos para persuadir exatamente essa perversidade de dizer que o marco temporal seria uma lei que declara explicitamente o racismo contra os povos indígenas.
Portanto, o parlamento brasileiro declara explicitamente que o Brasil é racista, que é um país incapaz de promover o diálogo em suas diferenças, e que escolhe assumir conscientemente o racismo, a discriminação aos povos indígenas por meio dessa narrativa do marco temporal. E tudo isso para justificar apenas a concepção de que a terra, a floresta e a água são recursos para gerar riquezas. Portanto, aí entra o poder financeiro novamente.
Os povos indígenas entendem as terras de maneira diferente. Para nós, a terra é parte do nosso corpo, portanto, um território, assim como a terra, a água e os humanos que nela habitam. Esses ambientes são espaços onde habitam outros humanos que não nós, são o que chamamos de Wai-Mahsã, que são pessoas que habitam esses locais sob outras condições, com os quais nós, humanos, interagimos, nos comunicamos e aprendemos com eles. Essa nossa concepção é o que nos constrói e nos faz construir a nossa relação com nosso entorno. Não olhamos a terra como recurso.
Outra derrota para os indígenas foi o esvaziamento do ministério por meio da Medida Provisória 1.154, de estruturação do governo. A política de demarcação de terras, por exemplo, saiu do MPI e foi para o Ministério da Justiça, onde era antes. Analistas políticos avaliam que essa ação foi proposital, para diminuir o poder político da pasta, assim como fizeram com Marina Silva e o Ministério do Meio Ambiente. O que isso representa para o senhor?
Vamos ter que entender que essas iniciativas são armadilhas do próprio sistema. Por quê? Porque na medida em que você oferece uma coisa, cria a possibilidade de os indígenas ocuparem essas instâncias e você não dá condições financeiras para isso, você automaticamente impossibilita o trabalho. Estamos atentos a essas armadilhas, de não cair nessa narrativa de que o governo está sendo bonzinho, que é defensor dos povos indígenas, do meio ambiente. Não, são armadilhas que ficam explícitas quando o próprio parlamento começa a mostrar a sua cara. Esse esvaziamento faz parte desse sistema dominante.
A gente tem um governo que criou o MPI e se mostra mais sensível à causa indígena. Nesse contexto, tivemos essas derrotas na Câmara. Parte das lideranças indígenas, de analistas políticos, falam que o governo ficou de mãos atadas, fez pouco para evitar esse fim. E tem ainda o fato de a Câmara estar pressionando o governo para barganhar mais influência política na gestão. Qual é a sua visão a respeito da ação ou inação do governo?
Para mim, são as armadilhas. Não é porque o governo é bonzinho, é porque está sofrendo muitas pressões, sejam internas ou externas, e faz isso. Mas ele sabe que tem um grupo, que existe um sistema que não compactua com os direitos indígenas. O parlamento é dominado por latifundiários, pelo agronegócio, por grileiros, representantes desses grupos. É o Estado brasileiro que é assim. O governo está ciente disso. O que me impressionou foi um deputado petista [Zeca do PT, deputado estadual do Mato Grosso do Sul] chamar um indígena [Eloy Terena] que está manifestando a nossa opinião contra o marco temporal de ‘advogadozinho’. Ele não é capaz de falar a mesma coisa para os advogados do agronegócio, dos grileiros, dos garimpeiros. Daí a gente vê que o governo não é o que imaginamos, bonzinho para os indígenas e meio ambiente. É claro que tem deputados do PT que entendem a causa, querem contribuir, construir, mas a maioria do parlamento é construído por representantes desses grupos sociais.
O senhor falou algumas vezes que o governo não é ‘bonzinho’. Essa gestão difere da anterior, porque retomou as demarcações, criou o MPI e se comprometeu a reestruturar a política indigenista. Por outro lado, foi criticada por inação nessas votações na Câmara e já teve representantes demonstrando apoio a projetos com potencial para afetar indígenas, como a exploração de petróleo na foz do Amazonas e a de potássio em Autazes. Apesar do pouco tempo, o senhor já se considera decepcionado com o governo?
Essas demarcações que saíram não foram desse governo. Ele apenas assinou o que não estava sendo assinado. Não é que ele empenhou, que fez. Assinou, porque estava na mesa. A Dilma deveria ter assinado. O Temer deveria ter assinado. O Bolsonaro declarou abertamente que não demarcaria terra. Lula está agindo agora nessas questões que estão explodindo agora, como o caso dos Yanomami, porque precisa responder a isso. Não é uma política de Estado, está apenas respondendo a questões imediatas. Queria ver muito a política, o meio ambiente, a questão dos povos indígenas, como política de Estado, não de governo. Portanto, Lula faz isso, demarca, é sua obrigação, daqui a pouco vão surgir outras demandas e vamos ver se ele vai assinar. Agora dificilmente se o marco temporal for aprovado, ele não vai demarcar. Pelo contrário, se isso for aprovado, corremos sérios riscos de terras demarcadas serem revistas.
Nessa esteira da relação entre governos e indígenas, o governador Wilson Lima se aproximou mais de lideranças do Amazonas no início desse ano. O ponto de partida foi a eleição da Maria Baré para a presidência da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). Ela encabeçou essa articulação, garantindo, inclusive, a nomeação de um indígena do movimento para a Fundação Estadual do Índio. Qual a sua avaliação sobre essa aproximação com o governador?
Os povos indígenas, por meio das suas organizações, sempre pautaram o diálogo. Sempre estiveram abertos para propor as políticas públicas. E percebemos que o nosso governo estadual vai de acordo com o sistema que está aí. Na primeira gestão, ele esteve afinado com o Bolsonaro. Agora mudou o governo e ele tenta afinar com esse governo, mas também a gente percebe muita pressão externa para que ele comece a olhar isso, senão não vai ter financiamento, outras possibilidades. O que me preocupa sempre é criar espaços para indígenas como maquiagens. Tem de ser política de Estado. À medida que você não dá orçamento é o mesmo que nada. Os indígenas não querem gabinete de emprego, mas uma política de Estado.
Perfil
Nome: João Paulo Lima Barreto
Estudos: Graduado em Filosofia e Doutor em Antropologia Social (Ufam)
Experiência: Pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). Fundador do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi. Membro do SPA – Science Panel for the Amazon (Painel Científico para a Amazônia), da Academia Brasileira de Ciência.
Texto original em: A Crítica